Touro Indomável (Martin Scorsese, 1980)

Não é nenhuma surpresa que Scorsese tenha hesitado quando de Niro levou a ele o projeto de adaptar a obscura biografia do ex-campeão dos pesos médios Jake LaMotta. Essa é uma história de decadência, sobre um personagem pouco simpático, movido quase sempre pela raiva e força física. Não exatamente aquilo que se tem em mente quando se está procurando fugir de uma crise de cocaína.

Ainda assim, é surpreendente o quanto Scorsese conseguiu dar vida à história e deixar sua marca inconfundível. As cenas dentro do ringue são o ponto alto. Fugindo da clássica filmagem plano/contraplano, que geralmente está associada às representações desse esporte, o diretor procura um trabalho de câmera mais fluido, trabalhando com ângulos inusitados, imagens mais representativas e até “poéticas”. Claro que, para isso, foi preciso fugir do espaço limitador do ringue de boxe e construir as imagens cuidadosamente, escapando bastante do realismo, mas ainda assim fazendo imagens vibrantes e rítmicas, que são o principal diferencial de todo o filme. Você nunca mais vai se esquecer do sangue de LaMotta escorrendo pela corda lateral do ringue, seu rosto desfigurado pelas constantes pancadas saídas dos punhos de um impiedoso Sugar Ray Robinson.

Assim como no boxe, toda a narrativa é um nocaute. LaMotta é sempre derrotado, inclusive nas muitas vezes em que sai vencedor. A escolha de iniciar a história com uma luta perdida, que para muitos pode parecer injusta, norteia o filme. Não importa quão longe chegue, quantas vezes vença, LaMotta jamais será capaz de escapar de si mesmo. E não se sabe se ele leva esse gênio dos ringues para a vida pessoal ou se o caminho contrário é o correto.

Com frequência, ele se mostra impaciente, perde a cabeça com coisas pequenas. Faz da esposa a principal razão de sua existência e, ao mesmo tempo, não consegue deixar de machucá-la, apesar de todo o amor que ela demonstra por ele. Em determinado momento, percebe-se a perfeição do título do filme. LaMotta é um touro (um animal, apesar de todas suas lamentações em sentido contrário), que age por impulso e não consegue evitar destruir tudo que está à sua volta. A atuação de de Niro, neste caso, é precisa, e consegue demonstrar bem as diferentes nuances do caráter do personagem.

Este é um grande filme sobre algo pequeno. É uma obra sobre a decepção. E mesmo após a suposta reconstrução da amizade de LaMotta com seu irmão, a última cena, seu simbólico retorno aos palcos, tem um tom agridoce. Isso porque o ex-boxeador não passa de um comediante medíocre e obeso, pouco consciente de sua própria condição decadente. E se a plateia está lotada para aguardá-lo, podem esperar apenas para ver alguém que um dia já esteve no auge de sua glória. Eles só não têm como saber que, mesmo então, a vitória soava muito mais como uma derrota.

O filme inteiro se beneficiaria de um tempo de exibição mais longo. Falta algo à construção do relacionamento de LaMotta com a mulher. A impressão é de que só ficamos sabendo pela metade, que não houve tempo para desenvolver certos detalhes importantes.

Muitos consideram Touro Indomável o melhor dos filmes de Scorsese. Eu discordo. Ele é um triunfo da técnica, mas, ainda assim, um filme imperfeito. Como eu disse, o boxe é seu maior trunfo, mas algumas das cenas fora do ringue soam quase banais e falham ao tentar mostrar algo do virtuosismo da história. Jake, sua esposa, o irmão preocupado, todos são personagens muito interessantes, mas que mereciam um desenvolvimento melhor da narrativa. Ou talvez minha crítica seja injusta. Talvez o filme reflita exatamente a banalidade da vida de LaMotta, a falta de interesse de seus laços afetivos, a falta mesmo de aspirações ou um plano de fundo mais intensos, que fizessem dele um personagem tão inesquecível quanto Sugar Ray, ao contrário da pessoa sem importância que ele acaba demonstrando ser.

Pulp Fiction (Quentin Tarantino, 1994)

Um homem com uma arma apontada para uma cabeça mexe com nosso imaginário. Em um dos extras do Blu-Ray de Pulp Fiction, o crítico Roger Ebert diz que um dos maiores prazeres do filme é o fato de mostrar coisas que são alheias à ação, que não seriam mostradas em nenhum outro filme do gênero. É verdade. O que seria de Pulp Fiction sem a sequência em que Vincent Vega (John Travolta, voltando do limbo pós-filmes musicais) fala com Jules (Samuel L. Jackson em uma de suas melhores atuações) sobre os hábitos alimentares dos europeus em comparação com os dos norte-americanos? Lá, o quarteirão com queijo se chama royale com queijo. E será que fazer uma massagem nos pés de uma mulher é motivo suficiente para que o marido dela o jogue de uma janela do quarto andar?

No final, o que isso tem a ver com a trama? Absolutamente nada. A lógica em Pulp Fiction, assim como em outros filmes de Tarantino, é invertida. Cenas de violência que realmente apresentam alguma ação apenas servem para dar o tempero ao diálogo dos personagens, e não o contrário. A própria escolha de não mostrar a cena em que Butch (Bruce Willis) mata seu oponente no ringue demonstra isso. Em vez de vermos a sequência, assistimos uma conversa, que em qualquer outro lugar seria bastante inútil, entre Butch e uma taxista.

Até mesmo por essa razão acredito que a violência nos filmes de Tarantino é superestimada. Ela é exagerada, fora de lugar, surpreendente e até estranhamente engraçada. É uma caricatura, à qual faltam, por opção, aspectos mais profundos e aterrorizantes da verdadeira violência. E se você prestar atenção, vai perceber que ela nem mesmo é tão gráfica quanto se imagina. Se mostra quase como em um videogame, no qual o sangue existe apenas para passar veracidade a quem está jogando, mas sem querer realmente chocar.

É também um prazer observar como o roteiro constrói um microcosmos particular para englobar quase todos os personagens. Dentro dele, capangas, assaltantes, estupradores, drogados, um boxeador próximo de se aposentar, a femme fatale, todos eles coexistem, se entendem, fazem sentido. Fora dele, há o cidadão comum, que aparece apenas pontualmente, como uma mulher sendo atingida por uma bala perdida, um garçom entediado, um apavorado gerente de restaurante.

Dentro desse mundo particular, os papéis não estão tão afastados daqueles existentes em um filme mais convencional. Dessa forma, um gângster que acaba de matar impiedosamente dois homens pode acreditar em Deus, em milagres, com uma noção de mundo quase exageradamente ingênua. Outro assassino pode tremer de medo e falar consigo mesmo em um banheiro por causa de uma mulher extremamente atraente, com quem ele simplesmente não consegue lidar.

O que acontece é que o filme procura, ao final de cada história (uma se sucede à outra fora de ordem cronológica, de uma maneira estranhamente circular), redimir seus personagens. Com um ato que, em tese, faria contraste com a forma de agir de cada um deles, os socialmente deslocados salvam suas almas e partem rumo a um final feliz. Pelo menos ao fim de sua parte, já que aqui eles são os heróis apenas em suas próprias histórias. O filme inclusive causa um momento de estranhamento ao “ressuscitar” um personagem em sua última parte, fazendo com que ele chegue vivo ao fim do filme.

Depois de Pulp Fiction, Tarantino voltaria a mostrar seu estilo único de direção em outros longas, como os já notórios Kill Bill e Bastardos Inglórios. Ainda assim, nenhum deles apresentou o grau de frescor e inovação que ficaram tão evidentes aqui e em Cães de Aluguel. Tendo trabalhado por tantos anos em uma videolocadora, o diretor faz em seus filmes praticamente uma grande colagem de outras referências. E é um dos maiores prazeres perceber que um amontoado de cenas antigas pode se unir para formar algo tão moderno. Esse deve ser o grande legado de Tarantino.

Os Melhores de 2011


Tomei a liberdade de fazer uma pequena premiação com os melhores filmes que estrearam em terras brasileiras no ano de 2011. Já estou colocando os indicados em ordem de preferência e os que estão em negrito são os grandes vencedores. Agora, que venha 2012!

 

Melhor Filme

A Árvore da Vida
Melancolia
Bravura Indômita
Cópia Fiel
Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 2
Meia-Noite em Paris
Toda Forma de Amor
Confiar
O Homem ao Lado
A Pele que Habito

 

Melhor Ator

Colin Firth (O Discurso do Rei)
Jeff Bridges (Bravura Indômita)
Hunter McCracken (A Árvore da Vida)
Mel Gibson (Um Novo Despertar)
Ryan Gosling (Namorados para Sempre)

 

Melhor Ator Coadjuvante

Daniel Araóz (O Homem ao Lado)
Christopher Plummer (Toda Forma de Amor)
Nick Nolte (Guerreiro)
Christian Bale (O Vencedor)
Jeremy Irons (Margin Call – O Dia Antes do Fim)

 

Melhor Atriz

Kirsten Dunst (Melancolia)
Natalie Portman (Cisne Negro)
Hailee Steinfeld (Bravura Indômita)
Jennifer Lawrence (Inverno da Alma)
Liana Liberato (Confiar)

 

Melhor Atriz Coadjuvante

Melissa Leo (O Vencedor)
Charlotte Gainsbourg (Melancolia)
Helena Bonham Carter (O Discurso do Rei)
Jessica Chastain (A Árvore da Vida)
Melissa McCarthy (Missão Madrinha de Casamento)

 

Melhor Roteiro Original

Meia-Noite em Paris
Cópia Fiel
Toda Forma de Amor
O Homem ao Lado
A Pele que Habito

 

Melhor Roteiro Adaptado

Bravura Indômita
Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 2
Cisne Negro
Capitães da Areia
Deixe-me Entrar

 

Melhor Diretor

Terrence Malick (A Árvore da Vida)
Lars Von Trier (Melancolia)
Abbas Kiarostami (Cópia Fiel)
Joel e Ethan Coen (Bravura Indômita)
Woody Allen (Meia-Noite em Paris)

 

Melhor Filme Estrangeiro (não falado em inglês)

Cópia Fiel
O Homem ao Lado
A Pele que Habito
Um Conto Chinês
O Garoto da Bicicleta

 

Melhor Filme de Animação

Rango
O Mágico
Kung Fu Panda 2

 

Melhor Documentário

Trabalho Interno
Lixo Extraordinário
Restrepo
Isto Não é um Filme

 

Melhor Direção de Arte

A Árvore da Vida
Melancolia
Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 2
O Homem ao Lado
Capitão América: O Primeiro Vingador

 

Melhor Fotografia

A Árvore da Vida
Melancolia
Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 2
A Pele que Habito
Bravura Indômita

 

Melhor Edição

A Árvore da Vida
Melancolia
Toda Forma de Amor
O Homem ao Lado
A Pele que Habito

 

Melhores Efeitos Visuais

Melancolia
Planeta dos Macacos: A Origem
A Árvore da Vida
Gigantes de Aço
Super 8

Drive (Nicolas Winding Refn, 2011)

Drive carrega o espírito de um filme B, só que recheado de cenas de gore e explosões de violência. Somente bem próximo do final do longa, percebi que o protagonista (Ryan Gosling) não tem nome. Também não tem passado, futuro, personalidade definida ou um motivo para viver. Ele dirige. Isso deve ser o suficiente para o espectador. O engraçado é que não parece fazer isso pelo dinheiro, ou mesmo por prazer. Faz por que sabe fazer.

A chave para criar um personagem enigmático sempre foi dizer o mínimo possível sobre sua identidade. Se você se lembrar de Eastwood na trilogia de Leone (onde também não tinha nome, apenas apelidos), saberá que muito desse mistério é tão artificial quanto um truque de mágica. Não há enigma, não há nada, só o que está escrito no roteiro. Mesmo assim, a impressão é de que há um outro filme, fora da tela, feito com tudo aquilo que não sabemos. E esse filme sempre parece ser muito mais interessante do que o que estamos assistindo, o que faz aumentar nossa atenção em relação ao que vemos.

A história de Drive é corriqueira. Um motorista dublê de filmes de ação trabalha à noite com criminosos. Sua única regra é que o crime tem que acontecer em 5 minutos. Então, ele dirige. Para longe da perseguição e da polícia. Tudo está bem, até que ele conhece uma garota (Carey Mulligan) e o filho dela. E acaba se envolvendo com gângsters e mafiosos para pagar a dívida do marido da moça.

O principal mérito do filme está na direção precisa de Nicolas Winding Refn, que interpõe momentos de tensão a cenas de um marasmo contemplativo. Quando entramos no carro, o ritmo se eleva visivelmente, o motor roncando cada vez mais alto, as ruas correndo em nossa direção como se estivéssemos sentados ao volante. A violência está presente em toda narrativa e é chocante todas as vezes em que acontece, por ser completamente inesperada. A trilha musical é composta quase que exclusivamente por canções de referência pop, com uma voz desconhecida e agradável de mulher explodindo nos alto falantes.

O que mais chama a atenção é que Drive não é um filme fácil de definir. Também não é sempre agradável de se ver. Ele se localiza no panteão de obras originais feitas em cima de temas e acontecimento banais e já explorados em outros momentos. É difícil destacar atuações individuais simplesmente porque os atores estão imersos na narrativa, a ponto de parecerem incrivelmente naturais dentro dela (um sinal de que o elenco está bastante bem).

Sinto que, com o tempo, o status desta produção vai crescer cada vez mais. Para onde, ainda não sei. De uma forma ou de outra, é um filme bastante fora do comum, e, ainda por cima, excelente.

O Iluminado (Stanley Kubrick, 1980)

All work and no play makes Jack a dull boy. All work and no play makes Jack a dull boy.

Os filmes de Kubrick têm uma característica interessante: gostando ou não, são praticamente inesquecíveis. O Iluminado não é diferente. Não é, de forma alguma, um filme de terror comum. Enquanto o livro de Stephen King, que deu origem ao filme, deixava desde o início bastante claro que o hotel Overlook (como sempre, construído sobre um cemitério indígena) era o único culpado pelos infortúnios que recaíam sobre a família Torrance, o filme sugere que a loucura esteve sempre presente na cabeça de Jack (Jack Nicholson).

Minha irmã me disse, enquanto assistíamos O Iluminado esta semana (eu, pela terceira vez; ela, pela primeira), que o filme não atingiu suas expectativas nem como uma obra de terror nem como filme. A primeira reclamação é fácil de entender. Qualquer um que espera tomar sustos ou se apavorar, certamente vai ter uma decepção. A segunda… bem, acredito que seja uma coisa que sempre senti em relação a Kubrick. Os comentários sobre seus filmes costumam ser tão exaltados que não se espera nada menos do que uma obra-prima ao assisti-los. Não que O Iluminado não seja. Mas altas expectativas costumam vir acompanhadas de resultados não tão bons quanto se espera.

Apesar de ser o único filme de horror de Kubrick, O Iluminado pode se mostrar uma das suas criações mais prazerosas. Enquanto os personagens percorrem os gigantescos e suntuosos corredores do Overlook, sente-se uma atmosfera de perigo carregada de uma certa displicência que é simplesmente a alma do filme. E, claro, também é estranhamente confortador ouvir o velotrol do jovem Danny (Danny Lloyd) passando do som abafado dos tapetes para o ruído do chão. A trilha musical, aliás, parece estar sempre ali em momentos cruciais, como para nos lembrar constantemente de que, apesar das aparências, tudo não está bem. Perceba, por exemplo, como uma música de absoluto suspense toca da primeira vez que entramos na despensa. Talvez seja o hotel, querendo nos avisar que algo muito importante está para acontecer ali dentro.

A mania de perfeição de Kubrick durante as filmagens já se tornou lendária. Assim como o fato de que Shelley Duvall foi levada à exaustão pela metódica e extensa repetição de cenas. Na verdade, o filme carrega o recorde do maior número de takes para uma única cena. Uma cena em que Wendy (Shelley Duvall) sobe as escadas do hotel, próxima do final do filme. Isso, aparentemente, não foi em vão. É fácil dizer que Nicholson, Duvall e o pequeno Lloyd tiveram atuações exageradas. O que salta aos olhos, porém, é que Kubrick desejava esse exagero, para tornar o seu retrato da loucura ainda mais desesperador e histérico. Ou escrever páginas e páginas de “All work and no play makes Jack a dull boy” se parece com algo próximo a um comportamento adequado ou mesmo próximo da realidade?

A grande diferença entre o Jack Torrance da literatura e o retratado no cinema é que o primeiro era essencialmente bom, enquanto o segundo é cínico e, como acabamos por descobrir, muito mau desde o início. Os acontecimentos sobrenaturais do hotel não chegam a realmente interferir em seus pensamentos, mas apenas empurrá-lo na direção daquilo que sempre quis fazer – matar sua família com um machado. No final, Jack se torna apenas mais um retrato na parede do monumento à perversidade e loucura que é o hotel Overlook. Talvez seja isso que Wendy e Danny observam, com olhos e boca arregalados. A completa abjeção do seu principal pilar de confiança.

Cinema Paradiso (Giuseppe Tornatore, 1988)

Da primeira nota da trilha musical perfeita, composta por Ennio Morricone, à sua fantástica última cena, Cinema Paradiso é uma carta de amor das mais sublimes e inesquecíveis escritas para o cinema. Não se emocionar é praticamente impossível.

Ter uma infância dominada pelos filmes, trabalhando dia e noite como projetista de um cinema. Um cinema pequeno, é verdade, mas gigante em personagens e lembranças. Afinal, o que era o Paradiso senão um mundo de prazeres para os moradores da pobre cidadezinha? O quanto seus bancos carcomidos, sua cortina de feltro vermelho, até mesmo o inevitável cuspe vindo de cima ou os roncos de alguém que estava ali unicamente para dormir não deviam embalar os devaneios e discussões dos freqüentadores?

Totó (Salvatore Cascio) conheceu a amizade ali dentro, e lá deu seu primeiro beijo de amor. E mesmo que eu consiga evocar na minha mente a música do filme, não posso evitar colocá-la neste momento para tocar. Porque, de certa maneira, a trilha musical é o filme. Quando eu ouço, também vejo. Quando vejo, ouço. E sinto.

De muitas, muitas maneira, Cinema Paradiso é uma história de amor. De amor ao passado como nos lembramos, e não como ele realmente era. De amor às pessoas que nos cercavam, ao que costumávamos fazer, à escola, às travessuras, até às brigas. E é por isso que a história de Totó e Elena (Agnese Nano) também é maravilhosa. Porque tem respaldo de todo esse ambiente de nostalgia. Porque nunca se completou, ficou pelo caminho, como um sonho de que acordamos cedo demais. Aquilo de que mais nos lembramos são as coisas que não terminaram, porque perdemos tempo traçando futuros impossíveis, ações que não levamos a cabo e possibilidades malucas. Ei, e no final isso não acaba se mostrando muito melhor do que a realidade poderia ser?

Claro que há a passagem de tempo e a perda da inocência. O Cinema Paradiso (ou Nuovo Cinema Paradiso), depois do incêndio que aleijou Alfredo (Phillipe Noiret), cresce, ganha um projetor mais moderno e acomodações mais vistosas. Totó recebe seu primeiro emprego e passa a arcar com maiores responsabilidades. O padre deixa de cortar os beijos e cenas mais picantes dos filmes (como as costas ou o torso desnudo das atrizes). Alguns começam a usar a parte de trás do cinema como um pequeno bordel, no que talvez seja um prelúdio da decadência que irá se abater sobre ele.

O Totó crescido e cheio de memórias faz, às vezes, o papel de nós, espectadores, ao revisitar seu passado distante, enquanto encaramos as sombras, os resquícios daquilo que acabamos de ver. Não é preciso que ninguém diga nada (e perceba que nenhuma pessoa realmente chega a dizer) para que descubramos o que Totó se tornou. Nós o conhecemos. Sabemos que, apesar do tempo, suas aspirações, sonhos e desejos não mudaram. Assim como sabemos que a maldade da vida é que, enquanto o mundo muda à nossa volta, nós não mudamos. Continuamos os mesmos e amamos as mesmas coisas que amávamos antes. E ter que ver isso acontecer (o Cinema Paradiso ser demolido para dar lugar a um estacionamento) é o mesmo que morrer um pouco. Porque, mesmo que nunca voltemos a um lugar, precisamos saber que ele está lá, da mesma forma que nos lembramos.

Enquanto o reflexo dos beijos perdidos, encontrados agora que já não importa mais, cai sobre nós, o efeito é o de uma estranha completude. Não é abandonar, mas abraçar a inocência, lembrar-se de um tempo em que um mero beijo em uma tela de cinema era um atentado ao pudor. Lembrar-se de quando era possível morar em uma cidade e conhecer todos os seus habitantes. Lembrar de nossos sonhos, que ainda apareciam em um horizonte distante e ensolarado. E esquecer que, quando nos tornamos adultos, realizados ou não, não resta nada mais do que olhar para trás com olhos de tristeza, porque o passado nos parece então muito mais promissor e esperançoso do que o futuro.

2001: Uma Odisseia no Espaço (Stanley Kubrick, 1968)

“Daisy, Daisy, give me your answer do. I’m half crazy all for the love of you. It won’t be a stylish marriage, I can’t afford a carriage. But you’ll look sweet upon the seat of a bicycle built for two.”

Uma imagem vem à mente. Um sol emergindo sobre um planeta obscuro, ao som do Assim Falou Zaratustra, de Strauss. O enigma da criação da vida humana. Devo confessar que, da primeira vez que assisti 2001: Uma Odisseia no Espaço, o filme não me chamou muita atenção. Verdade que a cópia era de qualidade duvidosa. Eu mesmo não estava em um de meus melhores momentos e talvez até menos da metade da minha atenção estivesse focada na obra. Consciente desses problemas, deixei de emitir qualquer opinião sobre o filme, simplesmente como se não o tivesse assistido. Agora, mais de dois anos depois, finalmente tive a oportunidade de revê-lo. Certamente, para mim, algumas coisas mudaram.

Em primeiro lugar, tudo fez algum sentido. A história da gênese humana, contada de maneira estranhamente lenta (pelo menos até o inusitado salto de muitos milênios), é de uma beleza contemplativa. Como em alguns dos maiores filmes da historia, a escolha da trilha musical é essencial, principalmente quando aliada às fantásticas imagens mostradas. É possível imaginar as músicas do compositor Alex North, que chegou mesmo a escrever uma trilha para o filme, no lugar das músicas clássicas escolhidas por Kubrick? Eu não consigo.

É, também, impressionante ver o detalhamento de aparelhos técnicos utilizados dentro das naves espaciais. A geringonça de comunicação por imagens (o tataravô das nossas videoconferências), as câmaras de hibernação, os alimentos armazenados em cápsula. O que rende as melhores cenas, porém, são as brincadeiras com a gravidade. O ambiente circular da espaçonave Discovery permanece icônico até os dias de hoje, com a gradual mudança do núcleo de gravidade que acompanha toda a sua extensão. A única coisa em que o futuro parece mesmo não ter copiado a ficção foi na odisseia espacial, que está ainda distante de acontecer.

O gigante bloco negro, que aparentemente foi o responsável pela transformação de gorilas em seres humanos, é algum tipo de metáfora para uma força criadora. Desconfio que ela tenha uma conotação muito mais científica do que religiosa. Isso porque, como na maioria dos filmes de Kubrick, as relações humanas são mecânicas e banalizadas, quase robóticas. Em 2001, tem um efeito bastante interessante, transformando uma inteligência artificial como o hoje famoso HAL em um ser com uma consciência humana muito mais emotiva do que os outros personagens. A sequência em que ele é desligado, em especial, é extremamente tocante. É, na verdade, a primeira e única vez em que alguém admite ter medo durante todo o longa.

As cenas do balé das espaçonaves são incrivelmente bem feitas, mesmo para os padrões atuais. Os momentos em que os astronautas se encontram no espaço, a sós com sua própria respiração, são claustrofóbicos e estranhamente incômodos, lembrando a total insegurança despertada pelo vazio completo. A sequência psicodélica, próxima do fim, parece ter o objetivo de ser hipnótica, quase como uma viagem de ácido. Porém, é o mais próximo que o filme chega de um exagero dentro de sua proposta. As imagens belas e coloridas, que também são desnecessárias e vazias de significado, conseguem despertar principalmente o tédio, acima de qualquer outra sensação.

A sequência final é, até hoje, curiosamente impenetrável. Eu enxerguei (aliás, assim como todo o resto do filme) como uma metáfora para o renascimento da humanidade. Uma visão positiva sobre o nascimento de uma era futura melhor, mais desenvolvida e, quiçá, mais humana. E, nesse caso, a falta de emoção dos personagens do filme faz todo o sentido. Não é exatamente a primeira vez que ouvimos falar de um sistema que procura equalizar todos os homens, suprimindo ao máximo sua individualidade. Só espero, sinceramente, que jamais cheguemos a esse ponto.

Não Tenha Medo do Escuro (Troy Nixey, 2011)

Há, em praticamente todos os filmes de terror e suspense, um momento em que se sabe que vai haver um susto e, mesmo assim, não tiramos os olhos da tela, esperando que isso aconteça. Não Tenha Medo do Escuro, apesar de ter alguns poucos desses momentos, não deixa de ser, ele mesmo, um exercício de espera para o telespectador. O filme não tem um roteiro primoroso. Na verdade, está bem longe disso. Mas, ainda assim, te deixa pregado na ponta da cadeira, aguardando o que vem a seguir, mesmo sabendo que não será agradável. Ele tem muitas cenas escuras. E essas são algumas de suas melhores partes.

O interessante é que toda a baboseira de dentes e moedas e crianças se perde e enrola no próprio roteiro, que é um tanto confuso. O filme, porém, é uma grata surpresa quando apresenta os pequenos seres viventes do porão. No caso, apresentar talvez seja uma palavra forte demais. Quero dizer, quando o longa mantém as luzes apagadas e vemos as sombras de coisas pequenas, numerosas e inevitavelmente letais andando pelos cantos.

É engraçado que aquilo que parece ser a principal estratégia do filme (fazer com que nos perguntemos se o que a jovem Sally vê é ou não real) já é estragada logo na primeira cena. O que acaba mesmo chamando a atenção é o fato de que tudo aquilo não passa, em certo nível, de uma metáfora para uma garotinha assustada e solitária, que luta para não ser engolfada pela tristeza. A cena com o psiquiatra, embora curta, mostra que o filme procura ter um sentido mais profundo. Quanto daquilo que está acontecendo pode ser também fruto do subconsciente perturbado da garota? Ou do nosso?

Sally é vivida com bastante intensidade pela jovem atriz Bailee Madison, o que não se pode dizer da madrasta Kim, que serve apenas como uma demonstração da falta de habilidade de Katie Holmes para atuar. Guy Pearce está apenas correto como o pai amorosamente distante.

As criaturas do porão são mais assustadoras quanto menos são vistas. Até o final do filme, porém, você vai acabar por vê-los até demais. Não que seu design não seja interessante. Me lembraram bastante alguns esboços que vi, na infância, de lendas de espíritos malignos. Ah, esqueci de comentar que os bichos são fadas que se alimentam de dentes de criancinhas? Bem…

Se você estiver procurando qualquer lógica, mesmo que dentro de sua própria lógica, vai se desapontar. O que começa com dentes de crianças evolui para adultos inteiros sem qualquer explicação. Esperava de del Toro, já que está fazendo uma homenagem ao filme que supostamente mais influenciou a sua carreira, no mínimo algo muito melhor. Porque o filme tem a atmosfera certa, a atuação certa (pelo menos a que mais importa) e os monstros corretos, criaturas da noite sorrateiras e mortais. Mas acaba mesmo devendo uma boa história.

O Exterminador do Futuro 2: O Julgamento Final (James Cameron, 1991)

Uma mão se despedindo em meio a um poço de lava. Essa é a principal recordação que tenho de uma tarde de domingo, há alguns anos atrás, em que assisti O Exterminador do Futuro 2, logo antes do Domingão do Faustão. A mão, é claro, pertencia a um Arnold Schwarzenegger robótico e despedaçado. Eu gostava dele. Não sabia porque gostava dele. Mas gostava.

Logo antes de assistir, fui bombardeado com algumas informações prévias. Exemplo: o segundo é muito melhor do que o primeiro. Verdade. Mais bem produzido, mais envolvente, mais emocionante. E lá estava o Schwarza musculoso, inexpressivo e curiosamente carismático. Merecia um Oscar pela forma como retratou um robô. Pena a crítica ter percebido que todas as suas outras atuações eram bem parecidas com essa.

Há muitas razões para este ser um grande filme. James Cameron parecia estar em sua melhor forma. A princípio, não se sabe qual dos dois exterminadores veio para matar John Connor (Edward Furlong) e qual veio para salvá-lo. Não estou certo se isso foi ou não uma surpresa na época do lançamento, já que os trailers entregavam grande parte do roteiro. Porém, dúvidas ou não, os lados se dividem claramente em uma primorosa cena de tiroteio. Schwarzenegger se revela como o salvador simplesmente ao dizer “Abaixe-se”, mostrando sua preocupação pelo bem-estar (ou apenas sobrevivência) do garoto.

A narrativa em off de Sarah Connor (a eterna Linda Hamilton) é apenas pontual e ajuda a conferir uma certa leveza à história, em geral frenética e explosiva. É impossível deixar de prestar atenção nas cenas de ação, já que elas estão intrinsecamente ligadas à história.

“Porque, se uma máquina, um Exterminador, pode aprender o valor da vida humana, talvez nós também possamos”, considera Sarah ao final do filme. E ela está correta. A relação entre o Exterminador e o jovem John Connor é o coração de O Exterminador do Futuro 2, porque ela está em seu centro e porque é o que traz mais emoção às cenas e diálogos. Sinceramente duvido que um robô jamais seja como este vivido por Schwarzenegger. Um ser que reconhece sua não-humanidade, mas que se mostra capaz de entender e amar o ser humano, apesar de não se importar com ele além do que ordena a sua missão.

Interessante também é que a rebeldia de John claramente não é motivada por maldade, mas pela falta de limites e de um exemplo familiar. Apesar de estar no comando de um ciborgue letal, John não o utiliza para interesses egoístas e, na maioria das vezes, age apenas visando o bem dos outros. São reflexos de um futuro líder.

Nos extras do Blu-Ray, há uma pequena cena, não utilizada no filme, em que Sarah conta que, naquela noite, eles realmente mudaram o mundo. Nenhuma rebelião aconteceu. John se tornou um Senador e “salvou o mundo de outra forma”.

Gostei que esse final não tenha sido utilizado. Soa artificial. Nós temos o poder de mudar nosso futuro? Concordo. Mas até que ponto as ações dos protagonistas teriam sido capazes de evitar a ganância, o egoísmo, a própria evolução da raça humana? O que impediria um outro qualquer de inventar uma máquina tão desenvolvida quanto aquela criada pelo cientista Miles Dyson (Joe Morton)? A verdade mesmo é que podemos mudar o nosso futuro. Porém, se ele está batendo à sua porta, de jaqueta e óculos escuros, resta dizer hasta la vista… baby.

O Estranho Mundo de Jack (Tim Burton, 1993)

“Você está provavelmente se perguntando de onde vêm os feriados. Se não está, eu diria que já é hora de começar.” 

Uma abóbora é sempre uma abóbora, exceto em uma noite do ano. No Halloween, uma abóbora deixa de ser um alimento de sabor duvidoso para alcançar o patamar de símbolo. Essa é a noção que Burton levou em conta ao produzir sua animação em stop motion, O Estranho Mundo de Jack. O que ele sugere, de uma forma não exatamente sutil, é que a simbologia de cada universo só faz algum sentido quando ligada à sua própria lógica. Fora disso, todo o resto se torna estranho e incompreensível.

Na distante década de 90, quando o show de Natal da Xuxa ainda não era uma realidade (aleluia!) e a animação por computador dava seus primeiros passos, o Cartoon Network costumava passar todos os anos uma seleção de desenhos de Natal. Invariavelmente, O Estranho Mundo de Jack estava lá. O que mais me chamava a atenção então eram os cenários e personagens estilizados, assim como a bizarrice daquela história que misturava Halloween e Natal.

Infelizmente, não há muito mais o que falar sobre esse filme. Os personagens são bonitinhos de um jeito macabro. As músicas são fofinhas e, depois de um tempo, entediantes. Provavelmente foi por causa do tempo que se passou, mas não consegui gostar tanto do filme quanto costumava.

Estou achando incrivelmente difícil terminar este texto, o que geralmente não é um bom sinal. O tempo é implacável. Já me disseram que as pessoas não mudam. Isso é uma mentira. Antes, tinha outros objetivos, outras paixões, uma nova forma de enxergar o mundo. Passei por alegrias, desilusões, perdas. Mudei de escolas, fiz novos amigos, conheci pessoas e lugares diferentes. O mundo ao redor mudou, surgiram as redes sociais, internet no celular, e tudo parece mais “conectado”. Uma criança de 5 anos tem acesso a bancos de dados gigantescos de pornografia. As bandas de maior sucesso no Rock in Rio não tocam rock. É possível ter uma sessão de cinema na sala de casa, com imagem e som melhores do que qualquer Cinemark.

Portanto, sim, algumas coisas mudaram. Jack Skellington estampa muitas bolsas, camisetas, jogos e produtos da Disney. Pouca gente se lembra do desenho por trás do personagem. Mudou também a forma como enxergo O Estranho Mundo de Jack. O filme me pareceu datado de uma maneira esquisita. Como se tivesse sido feito em uma época e lugar em que seu impacto faria algum sentido. Hoje, para mim, não fez. É triste. É como macular uma memória importante e feliz da juventude.